domingo, 7 de fevereiro de 2016

Pessoas Cinzas ou Fila Colorida?

Estou com uma fome terrível hoje! Sigo apressada para o restaurante, não tenho muito tempo hoje.
Espero que a fila do restaurante não esteja muito grande. Afinal, hoje temos fila para tudo. Sempre estamos esperando em alguma fila. Na verdade a fila do restaurante não é a mais problemática e cansativa, mas cá entre nós, a do ônibus e do banco é as que eu mais detesto.
Sempre tenho a impressão que a do banco é a fila mais formal e impessoal, as pessoas sempre estão sérias e cinzas. Os movimentos que fazem enquanto estão na fila, geralmente é um leve balanço pra frente e para trás. Ficam o tempo todo mudando a posição dos pés como se estivessem ensaiando algum novo passo de dança. Tem os que ficam o tempo todo revisando documentos que vão pagar e olham para o celular, mesmo ele não estando a tocar. A fila do banco pra mim é uma tortura, basta chegar ao banco e ver o tamanho da fila é motivo suficiente pra já começar a me sentir mal. Já começo a fazer esse movimento de balanço pra frente e para trás, e conseqüentemente vou ficando com tontura e sinto-me muito mal.
Mas agora vou correr para a fila do restaurante.
Sempre essa pressa, encontro pelo caminho aquele senhor simpático que passa por mim sempre neste mesmo horário.
Mas, hoje ele está caminhando mais devagar do que de costume. Enfim! O restaurante.  E lá está ela, formada. A fila, é lógico.
Bem diferente da fila do banco. As pessoas não são cinzas.
Na verdade elas são de muitas cores, até contrastam com as cores das saladas e das frutas.
E o som de uma fila de restaurante também é bem diferente da  fila de banco.
Esta fila é uma variedade de sons.
Até os que almoçam sozinhos, sempre acham alguém para conversar.
Pode ser o dono do restaurante, o garçom ou as pessoas que fazem parte da própria fila. Não há caras nervosas. Caras de fome sim.  Mas as pessoas sorriem mesmo com fome e são gentis umas com as outras.
Essa fila é a minha preferida, sem dúvida.
Sirvo meu prato e sento-me logo em seguida. Hoje não tenho muito tempo, logo volto para o escritório.
Minha mesa me aguarda com muito trabalho atrasado.
E a fila de pessoas coloridas e sonoras segue em frente.
Eu acabo de almoçar. Dou uma conversada com o proprietário do restaurante e logo já estou na rua novamente e me apresso para chegar logo. Sem atrasos! Quando entro na rua do escritório vejo de uma certa distancia o senhor simpático que encontro todos os dias. Acho estranho que ele ainda esteja na rua, pois passo por ele a caminho do restaurante mas não no retorno para o escritório. Dou uma apressada no passo e quando estou já retirando meu cartão magnético da bolsa,  tempo mínimo de baixar e levantar os olhos, não vejo mais o  homem. O que vejo é um homem caído no chão, algumas pessoas passam por ele e não fazem nada. Acho que pensam que somente está deitado, tirando um soninho na calçada. Eu tenho absoluta certeza que ele estava caminhando e que em seguida caiu. Corro em direção ao local e vejo que tem uma sacola com algumas compras e seu celular ao seu lado. Eu sabia que ele havia caído.
Não sei o nome dele.
Algumas pessoas começam a passar e perguntar o que houve com ele, eu começo a ficar nervosa com aquilo e peço que liguem para o resgate.
Tento ligar do meu celular. Ao mesmo tempo falo com aquele homem que não sei o nome, mas que faz despertar em mim muita compaixão. Esqueço totalmente da minha pressa de chegar ao escritório. Naquele momento tudo o que existe no mundo é aquele homem! As pessoas param e continuam a perguntar o que aconteceu. Eu continuo a falar com ele que começa agora a ficar agitado, seguro sua mão e falo que tudo ficará bem.
Sei que ele não está entendendo o que estou falando, mesmo assim tento usar um tom de voz que ele possa sentir-se melhor e mais seguro ao ouvir e que sinta-se mais calmo.
Muitas perguntas passam pela minha cabeça naquele instante.
Quem é aquele homem! Como é seu nome? Quem são seus filhos! Onde mora? Que tom de voz gosta de escutar!
Os curiosos vão chegando. Só quem não chega é o resgate.
Continuo com o olhar fixo no rosto enrugado daquele homem, passo a sentir um profundo amor por essa pessoa que não sei nada de sua vida. Só quero que o resgate venha logo e leve-o para ser atendido e que ele possa ficar bem. Fico segurando sua mão e começo a escutar a sirene do resgate.
Entrego seus pertences para o bombeiro e solto sua mão. Levanto e fico mais afastada acompanhando o resgate fazer seu trabalho.
A sirene começa a tocar e enfim saem em direção ao hospital.
Fico ali, parada. Perco a noção do tempo.
Afinal, que tipo de homem é esse? Onde está sua família? Será que vive só?
Seria ele um homem cinza? Ou...

Seria ele, assim como eu, um apreciador de uma boa fila de restaurante, muito colorida, sonora e cheia de sabores e bom humor?
Terça ou Quinta?


     Não acredito! Vou precisar correr de novo.Toda manhã é a mesma coisa. Vou acertar meus horários. Tenho que chegar ao escritório a tempo de falar com ele antes de Liana. Preciso conversar com ele antes que ela despeje todo o seu veneno.Com sorte, descendo essa escada correndo chego na  plataforma a tempo de entrar no trem.
     Por que as pessoas não sobem a escada pela direita? Porque? Por que sempre tem alguém obstruindo a minha passagem. Não vou conseguir! Não, não vou!
     Quando chegar ao escritório não dará mais tempo. Escuto o som do trem e estou nos primeiros degraus da escada, uma pessoa sobe na minha direção, pela esquerda, carregando muitas sacolas e esbarrando em mim, o suficiente para me atrasar mais ainda.
     Não consigo me controlar e falo em tom irritado: Suba sempre pelo lado direito, por favor! A mulher me olha incrédula. E eu não acredito na minha própria irritação. Tudo parece dar errado já nas primeiras horas da manhã. Continuo descendo a escada, minha testa está molhada de suor. O trem está na plataforma, mais um pouco e conseguirei. Meus olhos controlam os degraus e ao mesmo tempo a porta aberta me esperando.
     Preciso levantar mais cedo. Não, na verdade tenho de deitar mais cedo.Tenho de perder esse costume de ver filme até muito tarde, estou pagando o preço por não descansar o suficiente. Hoje é terça-feira e eu estou exausto, até parece na verdade quinta, aquelas quinta em que você fica torcendo para que seja sexta. Quem ainda não  confundiu uma quinta com uma sexta? Isso acontece sempre comigo. Exausto. Sinto-me exausto e irritado. Agora só falta chegar atrasado no escritório para que a terça-feira se complete.
     Não vai dar. Escuto o zunido da porta do trem fechando. Olho fixamente para o primeiro vagão, meus olhos na verdade ultrapassam a cabine onde se encontra o condutor, como se quisesse que ele entendesse que não posso perder esse trem. Ele precisa abrir essa porta. Como pode fechar a porta assim? Eu continuo olhando para o primeiro vagão, esperando. O trem começa a movimentar-se. Minha vontade é xingar o  condutor, a mulher das sacolas, a escada e até a pessoa que vem logo atrás de mim, apesar de estar na mesma situação que eu, afinal, também perdeu esse trem. 
     Que remédio? Só resta esperar o próximo. Meus planos de explicar o meu erro foi pelo espaço. Sinto que agi errado e estou prestes a perder a amizade de quem sempre foi tão correto comigo. Hoje isso não poderia ter acontecido, como fui me atrasar tanto? O suor escorre pelo meu rosto. A pessoa pára bem ao meu lado, não quero que fale comigo, não quero falar, só quero pensar, pensar! Por favor, não fale comigo, agora não. Impossível.  Escuto a primeira palavra enquanto seco o suor de meu rosto:
     - Chegaremos os dois atrasados hoje. Espero que ao menos Liana já esteja no escritório.
     Fiquei pálido ao vê-lo. Mas incrédulo de ter a oportunidade de pedir desculpa por um erro, oque está tirando meu sono.
     Os minutos voaram e escuto o barulho do próximo trem. A porta abre, meu colega de escritório e amigo entra primeiro, pela porta da direita e eu logo em seguida, também pela porta da direita. Sentamos. Antes de começar a falar ainda assisto aquela cena do retardatário colocando seu pé, impedindo que a porta feche. É terça.



terça-feira, 10 de novembro de 2015

Papel úmido não desliza.


Papel úmido não desliza.

O vento soprava forte naquela manhã, mas não forte o suficiente para varrer das ruas aquela quantidade enorme de folhas úmidas que caíram de suas árvores na noite passada. Entre o meio-fio e a calçada, a água escorre lentamente  rua abaixo e um menino  dá pulinhos nas poças d’água na calçada e sorri aquele sorriso inocente de menino. Meninos precisam ser inocentes! Sob o olhar reprovador da mãe o menino continua a pular  e seus olhos brilham de contentamento com aquela brincadeira tão prazerosa que é pular. Só pular e ver a água fazendo pequenos jatos para cima e para os lados. Só pular! Impulsionar o corpo para cima e descer de uma só vez e feito, a água pula brilhante, cintilante. Há uma mágica sintonia entre o menino, seus pés, o ar, o brilho da água e do  sorriso daquele menino. É só um instante! Um instante!

Lembra da sua calçada? Bela e convidativa poça d’água! A mãe do menino parece que esqueceu da sua. E ela existiu.

Ainda escuto os saltos do menino!

O cheiro úmido do dia toma conta da rua. O céu está pesado segurando com dificuldade todas aquelas nuvens sérias.
O pássaro não faz conta da cara feia do céu. Voa sem cessar e vai descendo devagar na poça d’água mais disputada daquela manhã. Consigo ver o sorriso daquele pássaro tão pequeno e frágil. Sorriso de pássaro fica nas asas, quando se abrem é impossível não ver aquele grande sorriso de prazer no voar. Voar por voar! Voar, voar, voar!

Tão difícil voar!

O motorista tenta desviar da grande quantidade d’água acumulada durante a noite. Naquela parte da cidade, os bueiros não funcionam direito pra suportar uma vazão tão grande de água. Os pneus cortam a água. Ela não admite que eles a sufoquem e forma quatro ondas perfeitas, alcançando com força a calçada e volta a sossegar  logo que o motorista dá a partida no ônibus novamente.

A capa de chuva protege mas não  suficiente. O carteiro repete sua seqüência de entregas. O menino pára de pular e corre para ele.
- Eu fico com o envelope azul, não esquece!
O carteiro sorri  e coloca nas mãos geladas daquele  menino, aquele envelope azul de todas as sexta- feira.
A chuva fria cai mais forte e aqueles pés rápidos e saltitantes correm para completar aquele ritual. O envelope úmido e as mãos do menino são cúmplices de um comprometimento. Seus pés rápidos tocam os degraus da escada enquanto sua mão gelada segura o corrimão, cantarolando e pulando. Seu entusiasmo em ser o portador daquela responsabilidade de colocar por debaixo da porta o envelope azul é comparado ao de pular na poça d’água na calçada. Só mais um minuto. Hoje é dia de empurrrar. Papel úmido não desliza. Seus pequenos dedos ajudam o envelope que desaparece  por debaixo da porta. Essa é a parte que menos gosta. Mãos vazias.

Julia De Menezes